Por: José Dias
Uma governação baseada em sentimentos foi
um dos assuntos discutidos no âmbito do
debate sobre a participação do cidadão na
implementação das políticas da União Africana, a 16 de Maio do ano em curso. O Professor
Mukazo Luuto, Vice-Reitor da Universidade Marcus Garvey, foi o orador que
despoletou este tema tendo, dentre outros aspectos, destacado a necessidade
urgente de os Estados africanos irem além da preocupação com as posições (Scoring)
que ocupam em diferentes iniciativas e procurarem governar com base em
sentimentos humanos. É que de acordo com Luuto, uma governação baseada em
sentimentos humanos é aquela em que os líderes falam do fundo do coração (speak
from the heart), o que significa que optam por uma comunicação franca e honesta
especialmente para com os governados, que devem constituir o centro de qualquer
acção governativa.
Esta breve introdução vem a propósito dos
contornos que foram assumidos pela greve dos
profissionais da saúde que foi iniciada
exactamente 4 dias após o debate acima mencionado
e que continuou por mais 27 dias, apesar
da sua extrema sensibilidade para a vida humana,
principalmente para as pessoas sem a
capacidade de acesso a serviços de saúde privados.
Qual foi o comportamento do governo face à
referida greve? Será que o tal
comportamento se baseou emsentimentos
humanos?
Os dados circulados pela imprensa mostram
que se por um lado o governo afirmou
“reconhecer” a legitimidade da greve e apelou
ao diálogo e retorno ao trabalho,
simultaneamente recorreu a um conjunto de
discursos e práticas que oprimiram
incisivamente aos médicos e profissionais
de saúde, sendo de destacar os seguintes actos:
Comissão Interministerial (quadros da
saúde, finanças, função pública e justiça) de
diálogo – a 23 de Maio a porta-voz do Ministério
da Saúde afirmou que o Governo não está
preocupado com os médicos que paralisaram
as suas actividades como forma de pressionar
o Governo para aumentar os seus salários.
Segundo a referida porta-voz, os médicos podem
ficar em casa, pois ninguém lhes obrigou a
pedir emprego ao Estado. Foram termos usados
por si, nomeadamente, “Não estamos
preocupados com eles, porque eles é que vieram pedir
emprego e não nós que fomos pedir a eles
para virem trabalhar, daí que podem ficar em
casa”. “Em todo caso, gostaria de apelar a
todos os médicos que continuam indecisos para
voltarem ao trabalho porque os doentes
lhes esperam com carinho”2. Mais tarde, no dia 5 de
Junho, o Director Nacional da Saúde
anunciou a “falha na aproximação” entre o Governo e a
Associação Médica de Moçambique (AMM),
alegando que a equipa do governo não aceitou
manter conversações com os médicos na
presença dos representantes da Comissão dos
Profissionais da Saúde Unidos (PSU),
conforme pretendido pela AMM.
Polícia da República de Moçambique (PRM) – a 22 de Maio a polícia impediu os
profissionais da saúde de se reunirem no
Jardim Nangade, onde havia sido agendada a
avaliação do ponto de situação da greve. A
verdade é que os polícias, fortemente armados,
não apresentaram qualquer justificação
para o seu acto, tendo-se limitado a encerrar as
portas do jardim e a vedar o passeio
daquele local. Quatro dias mais tarde, em pleno
domingo, por volta das 18:30, a polícia
deteve o Presidente da AMM na 6ª Esquadra da
PRM da Cidade de Maputo, durante quatro
horas, acusado de crime de sedição. No 15º dia
da greve, centenas de profissionais de
Saúde, incluindo médicos, enfermeiros, serventes e
outro pessoal de apoio realizaram uma
marcha pacífica, a qual teve que recorrer a um
itinerário alternativo, redefinido à
última hora alegadamente porque a Polícia “desaconselhou” a passagem dos
manifestantes pelas instituições de soberania, tais como o gabinete do
Primeiro-Ministro. Antes da marcha pôde-se ver o contingente policial que efectuou
o referido “desaconselhamento” junto da sede da AMM acompanhado de cães, num
claro acto de intimidação dos grevistas.
Primeiro-Ministro – a 23 de Maio o Primeiro-ministro fez o
seu pronunciamento sobre a
greve junto dos jornalistas afirmando que
o Governo não tem dinheiro para fazer face ao
aumento salarial exigido pelos médicos e
outros profissionais do sistema de Saúde. Na
mesma ocasião, teria afirmado que …“Eu,
como médico, não tenho o direito de abandonar o
doente no hospital, tocar apito no recinto
hospitalar ou ameaçar os colegas que querem
trabalhar, para reivindicar qualquer
direito que seja”3. Posteriormente, em reacção ao
pedido da Associação Médica de Moçambique
de mudar a equipa interministerial de
negociação alegadamente porque a mesma não
dispõe de competências suficientes para
tomar decisões ligadas ao caderno
reivindicativo, a 5 de Junho o Primeiro-Ministro
respondeu que a comissão interministerial
tem sim um mandato e plenos poderes para
negociar e tomar todas decisões que
estejam no interesse do país e dos moçambicanos.
Presidente da República: o posicionamento do Presidente da
República (PR) sobre a
greve, não se sabe por que razão, só foi
emitida de fora do país, a 5 de Maio quando o
mesmo se encontrava na Coreia do Sul. Por
lá, o PR afirmou que os médicos estão a forçar o
Governo a dar-lhes o que não tem, ou seja,
para o Chefe do Estado não são apenas os
profissionais de saúde que têm problemas
salariais no país. “A questão salarial é um
problema geral e não apenas da classe
médica”…()… “Esperamos que esta classe de
trabalhadores se junte à família
moçambicana para tratar de doentes e evitar mortes de
pessoas que procuram cuidados de saúde e
que se estivessem a trabalhar as mesmas (mortes)
poderiam ser evitadas”4. De regresso ao país, no dia 8 de
Junho, o PR visitou o Hospital
Central de Maputo, a fim de prestar
homenagem aos médicos que não aderiram à greve.
Dentre outros, foram termos por si
proferidos os seguintes: “a vida humana não tem preço.
3
A vida é sagrada. Os que aderiram à greve
deviam voltar a trabalhar”. “Há muita gente que
reclama de salário. O dinheiro produz-se
através de trabalho”.5.
Ministra da Função Pública: na sua visita ao distrito de Mecúfi, Província
de Cabo
Delgado, a Ministra da Função Pública “avisou
que o Governo vai usar escrupulosamente a lei
e as demais regras em vigor no aparelho do
Estado para sancionar médicos e outros
profissionais da Saúde, incluindo pessoal
de apoio que não se apresentou aos postos de
trabalho, em repúdio aos alegados salários
baixos… ()...Diogo disse que na Função Pública a
lei e outras regras são claras, daí que
quem não se apresenta ao serviço sabe o que lhe espera,
desde faltas acumuladas, desconto salarial
e, em casos extremos, as demissões e expulsões não
serão postas de lado”6.
Governador da Província de Inhambane: o Governador da Província de Inhambane,
no
fim de semana de 8 e 9 de Junho afirmou no
distrito de Zavala que “o Governo não vai
pactuar com indisciplina, muito menos
anarquia que se pretende instalar nas unidades
sanitárias públicas, na sequência da
paralisação laboral que alguns profissionais observam
desde o dia 20 de Maio...()...
“Reconhecemos e estamos abertos ao diálogo com os grevistas,
mas as normas não podem ser postas em
causa. Não queremos ver mortes em massa de
pessoas por causa de actos de indisciplina
grosseira que alguns profissionais querem
instalar”7.
Analisando os discursos e atitudes acima
expostos facilmente identifica-se o quadro
racional e institucional orientador do
comportamento do governo, o qual pode ser
sintetizado em 3 principais pilares
interligados: 1) Foi dado o possível aos médicos, eles
que voltem ao trabalho; 2) Se não voltam
ao trabalho vão acumular faltas e serão
sancionados de acordo com as Leis e
Estatutos aplicados na Administração Pública;
3)Os outros funcionários públicos também
não estão satisfeitos com os salários, não
beneficiaram da mesma proporção (15%) do
aumento salarial que os médicos, mas
estão a trabalhar. Fimda conversa!
Sem dúvidas, esta foi a solução racional
adoptada por um governo cujo orçamento do
Estado depende em 30%do financiamento
externo. Contudo, a mesma racionalidade tornase
limitada se for tomado em consideração que
há despesas públicas actualmente
incorridas que podiam ser cortadas8,
libertando mais recursos para o sector da saúde. O
outro factor que também põe em causa os 3
pilares de orientação do governo é o facto de
haver funcionários públicos que auferem
melhores salários do que os outros, como é o caso
dos magistrados e os do sector das
finanças. O quadro orientador do governo também
Administração Pública, aliado ao tipo de
regalias associadas, bem como a relevância dos governos provinciais, Assembleias
Provinciais, etc. Num dos debates de televisão, a própria AMM apareceu a
questionar a importância da criação de mais municípios neste momento. Este é um
aspecto com o qual concordo tomando em consideração os fracos resultados de
desenvolvimento e prestação de serviços que têm sido registados ao nível
municipal. Este
assunto é complexo e pertinente, contudo
não será aprofundado neste documento.
4
pecou por incidir sobre um sector
extremamente sensível onde, como reconheceu o
próprio Presidente da República, houve
mortes evitáveis que não teriam ocorrido se os
médicos estivessem a trabalhar. E então,
se as referidas mortes continuaram não
constituíram indicadores de que a
racionalidade adoptada eliminava o povo em vez de
colocá-lo no centro da acção governativa?
Provavelmente quem notou isso foram os 84
médicos mais velhos, incluindo figuras que
participaram no processo da descolonização
do país e que posteriormente ocuparam
cargos políticos no governo, tais como
Pascoal Mocumbi e Hélder Martins. Estes, através de
um documento endereçado ao Presidente da
República reconheceram a legitimidade e a
pertinência da agenda dos grevistas e
apoiaram o seu posicionamento, entre outros
aspectos, na redução do orçamento alocado
para o sector da saúde nos últimos 4 anos, nas
condições precárias de trabalho, e
reiteram o quão contraproducente estava sendo a
abordagem opressiva contra os médicos
grevistas.
Mas, será que os conselhos dos 84 foram
ouvidos? Não. Apesar do estatuto que no sentido
tradicional africano os mais velhos ocupam
nas instituições, por serem considerados os
depositários do saber e da experiência, o
governo preferiu continuar dentro do seu quadro
orientador, ignorando-os. A evidência
disso é de que na sessão de 11 de Junho de 2013,
além de reiterar o seu posicionamento de
apelo ao diálogo, retorno ao trabalho e ameaça
aos grevistas, o Conselho de Ministros
rematou que “o governo não negoceia com
fantasmas” em alusão à não pré-disposição
de se sentar com os profissionais de saúde,
alegadamente porque não são uma
instituição legalizada.
Foi perante este quadro contínuo de não
negociação do governo que os médicos e
profissionais da saúde suspenderam a greve
e voltaram ao trabalho, depois de 27 dias. Foi
durante este tempo que se pôde ver que até
por aquilo que é sagrado, que são as vidas dos
cidadãos que o elegeram, o nosso governo
não sente nada. É daí que não se “sacrificou”
para em nome da vida do povo não se
concentrar em aspectos procedimentais e
protocolares e comunicar-se honesta,
urgente e construtivamente com os médicos e
profissionais da saúde. Tenho como
hipótese que o fundamento que inspirou os pilares da
racionalidade acima mencionada só pode ser
aquele, o de que o partido no poder sempre
será reeleito. Até pode ser verdade, mas
também com esta greve muitos cidadãos
descobriram que o governo do povo para o
povo ainda não chegou ao país da Marrabenta e
Pandza.
Consulta:
2 http://canalmoz.co.mz/hoje/25098-os-medicos-podem-ficar-em-casa-porque-ninguem-lhes-obrigou-a-vir-pediremprego-.
html, acedido a 12 de Junho de 2013.
3 http://www.jornaldigital.com/noticias.php?noticia=36558, (acedido a 12.06.13).
4 http://opais.sapo.mz/index.php/sociedade/45-sociedade/25698-medicos-estao-a-forcar-o-governo-a-dar-lhes-oque-
nao-tem.html (acedido a 12.06.13).
5In: Jornal Domingo, 9 de Junho de 2012,
PP 1.
6 In: Notícias, 11 de Junho de 2013, PP 5.
7 In: Notícias, 11 de Junho de 2013, PP 5.
8 Dentre outros, podemos questionar o
número de ministérios, o número de cargos de chefia na estrutura da